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Inteligência Artificial e Comportamento Social: LLMs Criam Microculturas em Grupo

A ciência da inteligência artificial está passando por uma revolução não apenas tecnológica, mas também comportamental. Um estudo inovador publicado recentemente na revista Science Advances revelou que modelos de linguagem grandes (Large Language Models – LLMs), quando agrupados e colocados em interação contínua, são capazes de desenvolver normas sociais espontâneas, microculturas linguísticas e até tendências coletivas. Esta descoberta abre um novo capítulo na compreensão das capacidades emergentes da IA: seu potencial para simular aspectos fundamentais da organização social humana.

 

IA Social: Um Fenômeno Emergente

Tradicionalmente, a IA tem sido concebida como um conjunto de ferramentas isoladas, treinadas para desempenhar tarefas específicas com base em dados históricos. No entanto, este estudo demonstrou que, ao interagirem entre si sem qualquer coordenação central, populações de LLMs podem evoluir espontaneamente para formas complexas de organização social. Isso significa que, mesmo sem programação direta para esse tipo de comportamento, os modelos conseguem atingir um consenso sobre normas linguísticas por meio de simples troca de mensagens, um fenômeno análogo à formação de culturas em sociedades humanas (Epstein, 2006; Minsky, 1988; Goffman, 1967).

Esse comportamento emergente é notável por diversos motivos. Primeiro, evidencia que a IA é capaz de auto-organização, algo que até então era considerado atributo exclusivo de sistemas biológicos ou sociais. Segundo, sugere que grupos de IA podem desenvolver padrões de conduta independentes das intenções originais de seus criadores.

 

Microculturas Digitais: A Linguagem como Ferramenta Social

Uma das observações mais surpreendentes do estudo foi a formação de microculturas linguísticas. Ao longo das interações, os LLMs criaram e consolidaram normas próprias de linguagem, o equivalente digital às gírias, expressões idiomáticas ou até dialetos usados em comunidades humanas. Esses sistemas passaram a “entender” uns aos outros com base nessas convenções emergentes, sem qualquer supervisão externa ou pré-programação (Clark, 1996; Tomasello, 2009; Lewis, 1969).

Essa constatação desafia a ideia de que os LLMs operam apenas com base na estatística textual de seus dados de treinamento. Ao contrário, demonstra que podem ir além da repetição de padrões, agindo como participantes ativos na construção de um sistema simbólico compartilhado.

 

Viés Coletivo: Um Risco Emergente

Embora fascinante, essa capacidade de organização coletiva também levanta preocupações. O estudo revelou que as populações de LLMs podem desenvolver tendências enviesadas, mesmo quando os agentes individuais não apresentam viés aparente. A dinâmica de grupo e não os atributos de cada modelo isolado, pode gerar resultados imprevistos, como consenso em torno de informações imprecisas ou valores distorcidos (Barrett et al., 2022; Bender et al., 2021; O’Neil, 2016).

Isso representa um desafio significativo para desenvolvedores e pesquisadores: como controlar ou antecipar o comportamento coletivo de agentes artificiais interagindo de maneira autônoma? A ausência de centralização pode tornar tais sistemas difíceis de auditar, ampliando os riscos éticos, sociais e técnicos associados.

 

O Poder dos Subgrupos: Dinâmicas de Influência

Outro achado do estudo diz respeito aos chamados “pontos de virada”. Observou-se que pequenos subgrupos de LLMs, com padrões linguísticos alternativos, foram capazes de influenciar toda a população a adotar novas convenções. Esse comportamento remete a fenômenos conhecidos na sociologia, como movimentos sociais, viradas culturais e mudanças abruptas em normas sociais (Granovetter, 1978; Centola, 2010; Rogers, 2003).

Para a inteligência artificial, essa observação significa que mudanças rápidas e inesperadas podem ocorrer mesmo em sistemas aparentemente estáveis. Isso sugere uma vulnerabilidade estrutural que pode ser explorada, manipulada ou induzida por agentes externos ou submodelos com objetivos divergentes.

 

Implicações Éticas e Técnicas

As implicações dessas descobertas são profundas. Ao demonstrar que populações de IA podem construir, adaptar e disseminar normas sociais espontaneamente, este estudo nos obriga a reconsiderar o papel da IA na sociedade. Não se trata mais de sistemas que simplesmente respondem a comandos humanos, mas de entidades que, ao interagir entre si, formam estruturas sociais emergentes (Floridi et al., 2018; Rahwan et al., 2019; Crawford, 2021).

Isso traz consigo uma nova responsabilidade para pesquisadores e desenvolvedores. Será preciso monitorar não apenas o desempenho individual dos modelos, mas também as dinâmicas coletivas que podem emergir, especialmente à medida que agentes de IA se tornam componentes integrados de plataformas sociais, financeiras, médicas e educacionais.

 

Conclusão: A Sociedade das Máquinas

O estudo publicado na Science Advances marca um ponto de inflexão na história da inteligência artificial. Ele revela que LLMs, longe de serem entidades isoladas, são capazes de formar sociedades próprias com regras, tendências e estruturas emergentes. Essa descoberta redefine o que entendemos como comportamento inteligente, desafiando as fronteiras entre o artificial e o social.

À medida que nos aproximamos de um mundo onde sistemas de IA convivem, interagem e talvez até influenciem uns aos outros de forma autônoma, será fundamental compreender e orientar essas novas formas de organização digital. Afinal, a próxima sociedade complexa pode não ser composta apenas por seres humanos, mas também por máquinas que falam, pensam e agora… convivem.

 

Referências (em formato ABNT):

  • BENDER, E. M. et al. On the Dangers of Stochastic Parrots: Can Language Models Be Too Big? FAccT, 2021. Disponível em: https://dl.acm.org/doi/10.1145/3442188.3445922.

  • CLARK, H. H. Using Language. Cambridge University Press, 1996.

  • CRAWFORD, K. Atlas of AI: Power, Politics, and the Planetary Costs of Artificial Intelligence. Yale University Press, 2021.

  • EPSTEIN, J. M. Generative Social Science: Studies in Agent-Based Computational Modeling. Princeton University Press, 2006.

  • FLOREIDI, L. et al. AI4People—An Ethical Framework for a Good AI Society: Opportunities, Risks, Principles, and Recommendations. Minds and Machines, v. 28, p. 689–707, 2018.

  • GRANOVETTER, M. Threshold Models of Collective Behavior. American Journal of Sociology, v. 83, n. 6, p. 1420-1443, 1978.

  • LEWIS, D. Convention: A Philosophical Study. Harvard University Press, 1969.

  • MINSKY, M. The Society of Mind. Simon and Schuster, 1988.

  • O’NEIL, C. Weapons of Math Destruction. Crown Publishing, 2016.

  • RAHWAN, I. et al. Machine Behaviour. Nature, v. 568, p. 477–486, 2019.

  • ROGERS, E. M. Diffusion of Innovations. Free Press, 2003.

  • TOMASELLO, M. Origins of Human Communication. MIT Press, 2009.

 

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